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domingo, 9 de maio de 2010

AINDA HÁ ESPERANÇA PARA O FIM DO MUNDO


Reportagem de Alexandra Prado Coelho que saiu hoje no jornal "Público"


Cabo Espichel

Ainda há esperança para o fim do mundo

Nas comemorações dos 600 anos do culto da Senhora do Cabo Espichel, a Câmara de Sesimbra e um grupo de cidadãos organizados no Facebook querem travar a decadência do local - onde as romarias continuam a ir, mas as velhas hospedarias estão emparedadas e o património tem vindo a ser destruído pelo vandalismo. Por Alexandra Prado Coelho (textos) e Daniel Rocha (fotos)

Tinhamos combinado encontrarmo-nos no cabo Espichel, junto a Sesimbra. Mas aquela manhã de sexta-feira parecia o dilúvio. A chuva caía forte, empurrada pelo vento. Por fim, por entre as braçadas vigorosas do limpa-pára-brisas, o farol e o santuário apareceram à nossa frente, ao fundo da estrada deserta. Só havia mais dois carros estacionados neste cabo "finisterra", terra de fim do mundo. Um deles era de Carlos Sargedas, fotógrafo de Sesimbra, e um dos cidadãos empenhados em salvar o cabo Espichel da decadência em que entrou nas últimas décadas, agora que se comemoram os 600 anos do culto de Nossa Senhora do Cabo.

Enfrentando o temporal, lutando contra as portas dos carros empurradas pelo vento, saímos e abrigámo-nos debaixo das arcadas de um dos dois braços do santuário construídos para oferecer aos romeiros pequenas habitações básicas onde se podiam alojar durante as festas da Nossa Senhora do Cabo. São duas alas, a norte e a sul, que partem da igreja e que delimitam o longo terreiro nesse dia transformado numa piscina.

Desde há algum tempo que os alojamentos dos romeiros foram emparedados. Primeiro os da ala sul, propriedade da confraria à qual pertence a igreja, e mais tarde os da ala norte, por iniciativa da Câmara Municipal de Sesimbra, para evitar que o vento, a chuva e o vandalismo os destruíssem ainda mais. É portanto uma longa fileira de portas e janelas tapadas com cimento que percorremos.

A igreja tem apenas a luz das velas, porque o gerador nem sempre está ligado e aqui não há electricidade - e a que a câmara instalou no exterior, para iluminar o terreiro, foi também alvo de vandalismo para roubar o cobre dos fios. O mar está a poucos metros, provavelmente agitado num dia como este, mas aqui não se dá por isso porque a igreja foi construída de costas para ele - e para a Ermida da Memória, que assinala o lugar onde, conta a lenda, terá sido encontrada a imagem da Nossa Senhora, em 1410, data a partir da qual se contam os 600 anos que agora se celebram.

No interior da igreja está uma das senhoras que guardam o local, e que logo nos conta as últimas desventuras que o santuário sofreu. "Um dia, a minha colega chegou aqui e viu logo que a igreja tinha sido assaltada. Eles até velas acesas tinham deixado. Entraram por ali", e aponta para a parte de cima da igreja. Foi há cerca de um ano que a imagem de Santo António foi roubada por assaltantes que entraram na igreja e que "sabiam bem para o que vinham" porque não levaram mais nada. E as histórias sucedem-se. Foi roubada a rampa metálica que dava acesso às casas de banho, foi partido o cruzeiro que vemos lá ao fundo, do outro lado do terreiro, agora com a cruz transformada em T.

Ateliers, restaurantes

Se se conseguisse devolver vida quotidiana ao cabo - que é muito visitado aos fins-de-semana, mas está praticamente vazio durante o resto da semana - os actos de vandalismo poderiam acabar e poderia travar-se o processo de decadência do local, acredita Carlos Sargedas. Voltámos ao exterior, saltitando entre poças de água, espreitámos as ruínas da Casa da Ópera onde, durante as festas da Senhora do Cabo no tempo da monarquia, se organizavam espectáculos de ópera com cantores vindos de Itália, e estamos outra vez sob o abrigo das arcadas da ala norte, onde Sargedas explica a ideia do grupo que se organizou através do Facebook e que tem quase 2400 aderentes.

"Podiam abrir-se aqui
ateliers para artistas, pequenas lojas". Para isso seria necessário encontrar pessoas dispostas a avançar com um investimento inicial para a recuperação das hospedarias, que lhes permitisse instalarem-se ali não pagando renda durante um período a combinar - calcula-se que toda a recuperação do santuário custe perto de cinco milhões de euros. "Poderia até abrir-se um restaurante", continua Sargedas, desde sempre um apaixonado pelo cabo, que fotografou diversas vezes a partir do ar.

Esta é uma hipótese em cima da mesa. Mas há outras, explica Augusto Pólvora, presidente da Câmara de Sesimbra, que está disposta a assumir a posse administrativa do cabo (é já proprietária dos terrenos, que lhe foram doados por António Xavier de Lima, entretanto falecido, e nos últimos dois anos fez pequenas obras no exterior) e a encontrar, com outros parceiros, soluções que permitam tirar partido do potencial turístico do local.

O Inatel poderia ser um parceiro, admite Augusto Pólvora, num eventual acordo que envolvesse o Turismo de Portugal. Outra proposta é a de instalar ali um Centro de Ciência Viva - até porque, lembra o autarca, é no cabo Espichel que se podem ver pegadas de dinossauros com 145 milhões de anos, e todo o cabo é rico em vestígios geológicos, paleontológicos e espeleológicos. Uma terceira ideia é uma escola de hotelaria, eventualmente numa parceria com o Instituto do Emprego e Formação Profissional. "Seria uma coisa relativamente pequena, para formar cozinheiros, empregados de mesa. Podia haver um restaurante em que os alunos praticavam e até algumas unidades de alojamento. Seria uma escola com uma área prática, que poderia acolher visitantes", adianta Augusto Pólvora.

O compromisso do Estado

Mas como é que o cabo chegou à degradação em que hoje se encontra e que tanto a autarquia como os cidadãos organizados no Facebook querem inverter? Em 1995, a confraria, proprietária do santuário, doou ao Estado a ala norte, "com o compromisso de o Estado proceder à recuperação integral do santuário", recorda o presidente da câmara. A ideia era instalar nessa ala uma pousada da Enatur. "Havia o compromisso de as obras se iniciarem no prazo de seis meses e estarem concluídas no prazo de dois anos. Passaram-se 15 anos e quem for ao cabo vê o que foi feito".

Não foi feito praticamente nada. Houve, de facto, uma intervenção na igreja, primeiro no exterior, e depois com uma "obra mais completa e onerosa" no interior. Mas, continua Augusto Pólvora, "do conjunto da intervenção a que se comprometeu o Estado fez cerca de cinco por cento". Entretanto a Enatur foi integrada no Grupo Pestana, que não tem nas suas prioridades, segundo já explicou à câmara, investir no cabo Espichel.

Neste momento, o cabo tem três proprietários: a confraria (igreja e ala sul), a câmara (terrenos) e a Direcção-Geral do Tesouro e Finanças (ala norte). Nos primeiros contactos que a câmara fez, foi-lhe dito que o Estado tinha a posse do bem e que não tencionava devolvê-lo. Nos contactos mais recentes, o presidente da câmara verificou uma mudança de atitude e uma maior abertura à ideia de ser a autarquia a assumir um processo de mediação que permita encontrar investidores interessados.

Agora, pela primeira vez ao fim de muito tempo, parece haver esperança de que alguma coisa mude nas terras do fim do mundo. O santuário mantém-se serenamente à espera. As pessoas continuam a visitá-lo (é local de encontro de
motards, que uma vez por ano fazem uma missa especial). Os tempos áureos das grandes festas da Senhora do Cabo já são só uma memória, mas, apesar de todas as reviravoltas da História, o cabo Espichel nunca foi esquecido.

Na noite do dilúvio o padre Francisco Mendes, responsável pela confraria, preparava-se para fazer uma conferência sobre o santuário que, diz, "chegou a representar aquilo que Fátima representa nos nossos dias". No fundo da estrada, mesmo perto do fim do mundo, o gerador ia pôr-se a trabalhar mais uma vez e iluminar a igreja para os que quisessem ouvir contar a história de como nasceu, há 600 anos, o culto da Nossa Senhora do Cabo.

alexandra.prado.coelho@publico.pt

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